26.4.10

Esse outro que sou eu!


Existem momentos em que a pluralidade que me habita obriga-me a buscar as palavras de um outro que me traduza dentro da sua singularidade, ainda que também múltipla, porém diferente da minha multipicidade. Mais uma vez encontro em Manoel de Barros, tão bem definido, aquilo que, nesse instante, me ronda sem encontrar o verbo certo. Sou ele nesse seu dizer tão meu!


A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.

21.4.10

Pequenas maravilhas do grande poeta!


O poeta que fala das pequenas coisas com tanta grandeza, porque descobriu em si mesmo o quanto elas guardam do sagrado. Nos seus pequenos segredos, a semente da vida pulsa e todas as coisas pequenas revelam o mundo rico e profundo que existe dentro de um ser.Reverências!

O Apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisa desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros


14.4.10

Cá do meu jardim


Quando nos reservamos um pouco do mundo externo, fazemos contato com aromas, sabores, devaneios poéticos esquecidos entre as exigências do mundo. Cá do meu jardim, revejo flores. Aí vai um lindo buquê para a alma:

Cálice

A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
do mar.

escuta, amiga,
o desfiar das horas;
elas te dirão é tua
é tua a vida.

Toma-a (como se toma
um cálice de rosas)
na mão.

Antônio Brasileiro

9.4.10

Perto de mim


Hoje amanheci sendo uma só. Não me senti fazendo parte de um contexto do qual deveria me sentir à vontade. Entrei no meu jardim, sentei no meu banco, contemplei a minha paisagem e não havia mais ninguém. Os seres em torno de mim, amores inestimáveis, não conseguiam pressentir a minha ausência. E eu, de onde estava, ouvia vozes distantes a me cobrar movimentos bruscos, atitudes prosaicas e coerentes. Lembrei-me de cenas de filme em que um aeroplano caía no meio de uma mata densa e o rádio perdia a possibilidade de comunicação. Uma voz exigia contato, mas do outro lado... nada! Como partilhar esse nível de solidão, ou melhor, solitude? Impossível! Apenas espero pacientemente a minha volta e busco na alma a capacidade de refazer as tramas, os laços, os fios da convivência real (ou irreal?) que o dia- a -dia exige. Cá do meu canto converso com essa que, tão necessariamente se apresenta a mim, a fim de que possamos nos fundir para não morrer nos fatos trágicos e repetitivos divulgados na TV, nos jornais, na internet... Conversarmos para que não percamos os vínculos, o sentido da busca, os sinais sagrados inseridos em coisas aparentemente tão comuns. Olho nos seus olhos pra perder um pouco das olheiras que ganhei e que me envelhecem o rosto; olho pra ganhar o sono tranqüilo que perdi e, principalmente pra não perder os sonhos que sonhei durante toda a vida. Sei que passaremos alguns dias juntas e que isso incomodará a convivência familiar. Essa que me habita é silente, é atemporal, mas é também impaciente com o que carece de encanto, de poesia. Tudo a machuca, tudo a faz recolher-se. Entretanto ela tem a missão de me fazer continuar sem me perder. Tem como meta me proteger do que não sou. Aponta-me os caminhos por onde devo ir, me exige o resgate de coisas que abandonei em atalhos de fugas. Olho meu jardim, as minhas flores, o cavalete com a minha tela branca... Ela me diz que é preciso estender esse jardim para o mundo visível; as minhas flores precisam ser vistas antes do anoitecer e a tela branca aguarda pelas minhas mãos trêmulas, inseguras, infantis. Ela me abraça e eu me aceito assim: incompleta, imperfeita, humana.